Você
acha que é bom?
Com muitos anos de
experiência no ensino do Karatê, Mestre Benedito somente dava aulas para faixas
pretas. A exceção a esta regra eram alguns alunos de graduação menor que
residiam junto com outros faixas pretas no Condomínio dos Samurais[2].
Contudo, em 2006, Mestre Benedito decidiu voltar a dar aulas para alunos
iniciantes, no intuito de, deste modo, ensinar seus alunos graduados a como dar
aulas de Karatê. Foi então que uma nova turma de alunos foi formada, utilizando
uma das salas de aula da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista.
Na época, eu era um dos
professores de teologia nesta Instituição e vi uma excelente oportunidade de
retomar o estudo do Karatê sob a orientação de um professor experiente.
Tornei-me um dos alunos da nova turma e não demorou muito para perceber que o
aprendizado que eu teria seria bem mais profundo que o mero estudo de técnicas
de defesa e ataque.
Logo nos primeiros
meses de treino com o Mestre Benedito Nelson, vivi uma experiência um tanto
incomum nas academias de Karatê na atualidade. Eu estava acompanhando a aula,
realizando os movimentos de Kihon (técnicas básicas de Karetê), quando, de
súbito, Mestre Benedito parou a contagem dos movimentos e, dirigindo-se
especificamente para mim, perguntou: -
Você acha que é bom? Pois eu digo que não é. Eu já conheci alguns bons
karatecas, mas você não é. Estas palavras chegaram à minha alma como um
Oi-Zuki bem desferido, que abalou as estruturas de meu ego inflado.
Sentimentos
contraditórios buscavam ganhar espaço em meu interior. De um lado, senti uma
certa autopiedade, que me colocava em uma situação de vítima de uma advertência
considerada injusta, talvez até desnecessária, de meu professor de Karatê.
Afinal de contas, eu estava, simplesmente, aplicando força e vigor nos movimentos.
De outro lado, senti-me envergonhado, pois as palavras do Mestre conduziram-me
a um movimento de reflexão, revelando sentimentos ocultos que estavam em
desacordo com a verdadeira filosofia do Karatê.
O
Karatê e a formação do caráter
Mestre Benedito estava
correto em sua observação. Eu estava envaidecido, mesmo sendo um aluno tão
inexperiente. Queria de algum modo me fazer notar pelo Mestre, buscando que ele
me desse uma atenção especial, ou tecesse algum elogio. Algum sensei inexperiente, ou que não conduz
suas aulas baseado na verdadeira filosofia do Karatê, poderia simplesmente me
elogiar, sem perceber que, naquela ocasião, o elogio não traria o ensino mais
profundo. Pelo contrário, na maioria das vezes, os elogios excessivos acabam
gerando no aluno um sentimento de superioridade que dificulta seu processo de
aprendizado contínuo.
Mestre Benedito
analisava não somente o desenvolvimento das técnicas de seus alunos, mas também
observava os sentimentos que se revelavam no desenrolar das aulas. As situações
vividas nas aulas de Karatê eram utilizadas pelo Mestre como ferramenta de
análise de traços da personalidade de seus alunos.
Certa vez, em um treino
de kumitê, um dos alunos foi atingido e a luta interrompida. Ao retornar à
posição inicial de luta, aguardando o comando para recomeçar, aquele aluno
modificou seu semblante, sua respiração ficou mais ofegante, o olhar fito no
colega de treino, as pernas inquietas demonstrando certa ansiedade pelo retorno
à luta. Neste momento, Mestre Benedito ordenou que ele se assentasse,
convocando outro aluno para substituí-lo no combate.
O aluno ficou muito
contrariado. Seu objetivo era retornar ao kumitê e, de algum modo, provar a
superioridade que imaginara ter sobre seu colega de treino. Neste momento, o
sentimento correto seria o de gratidão ao seu oponente, que mostrou como sua
defesa ainda precisava ser aperfeiçoada. Mas, a vaidade e a necessidade de
autoafirmação impediram o aluno de colher um aprendizado muito importante.
Já vi situações em que
o professor, ao invés de agir dessa forma, acabou reforçando o sentimento de
vaidade do aluno, dizendo que ele deveria reagir prontamente, buscando a
superação de seu oponente. Esta é a conduta mais presente nas competições de
karatê na atualidade, onde professores reforçam em seus alunos o desejo pela
vitória, mas sem adverti-los quanto ao perigo da vaidade. Esquecem que a
humildade é o traço fundamental do caráter do guerreiro.
Desde adolescente,
quando iniciei a prática do karatê, sempre ouvi meus professores falando de
princípios como a disciplina, a honradez, a lealdade aos companheiros de luta,
o respeito aos mais antigos do dojô e
a busca da não violência. Porém, foi somente na fase adulta que percebi que o
processo de formação do caráter do guerreiro depende de algo mais profundo
ainda, que é busca de superação da vaidade e da necessidade egoísta de
autoafirmação e prestígio. Sem este elemento, todos os outros princípios do
karatê não serão observados devidamente.
Creio que as palavras de
Guichin Funakoshi podem melhor ilustrar e fundamentar o que tenho tratado neste
breve texto.
Muitas
vezes digo a meus alunos uma coisa que acham confusa. Digo-lhes: “Vocês devem
tornar-se fracos, não fortes.” Logo querem saber o que quero dizer com isso,
pois uma das razões que os levaram a escolher o Karatê-dô é a possibilidade de
se tornarem fortes. Não há necessidade de treinamento para se tornar fraco,
dizem eles. Repondo então que o que estou dizendo é de fato difícil de
compreender. “Quero que encontrem a resposta dentro de vocês mesmos”,
digo-lhes. “E prometo-lhes que vai chegar o momento em que vão compreender realmente
o que quero dizer”.
Estou
convencido de que esse tempo chegará. Estou convencido de que se os jovens praticarem
karatê com todo seu coração e toda sua alma, no fim chegarão a uma compreensão
de minhas palavras. Aquele que está consciente de suas próprias fraquezas será
senhor de si mesmo em qualquer situação; somente uma pessoa verdadeiramente
fraca é capaz de coragem verdadeira. Naturalmente, um praticante verdadeiro
deve aperfeiçoar sua técnica através do treinamento, mas nunca deve esquecer
que somente através do treinamento será capaz de reconhecer suas próprias
fraquezas. (FUNAKOSHI, 1994, p.121)
Ao reconhecer-se fraco,
o praticante de Karatê não perde seu tempo em auto afirmar-se, nem em vangloriar-se
dos seus pontos fortes. Pelo contrário, ele dedica maior atenção na
identificação de seus pontos fracos, sem tentar camuflar suas debilidades
físicas, a falta de refino das técnicas, sua insegurança, seus medos, seus vícios
e desvios de conduta.
O carateca deve ter a humildade para reconhecer seus erros, deste modo, o Karatê se consolida como caminho de formação do caráter, tratando-se de um conhecimento que serve para todas as áreas da vida.
O
objetivo do ensino do Karatê
A
partir de pequena leitura e dos ensinos que recebi de meus professores, em
especial o Mestre Benedito Nelson, compreendo que o verdadeiro Karatê é um
caminho de aperfeiçoamento da mente e do corpo. O ensino do Karatê que despreza
tal princípio compromete a formação do caráter dos alunos. Contudo, sabe-se que
o sensei que escolhe este nobre caminho
corre o risco de perder alunos envaidecidos que não aceitam a correção, ou
mesmo enfrentar alguns dissabores com pais de seus alunos, que não compreendem
a rigidez do ensino do Karatê, no que tange à formação do caráter.
Neste
ponto, em alguns momentos, o sensei
deve estar preparado para optar entre a quantidade de seus alunos ou a qualidade
deles. Espero profundamente que a necessidade de sustento e aspectos
financeiros não predominem sobre os princípios filosóficos que devem nortear o
ensino do Karatê.
Sei
que preciso aprender muito com os princípios que estão neste texto. E convido
os irmãos de kimono a refletirem e reforçarem os valores que aprendemos, de
modo que nossos alunos e discípulos deste caminho possam colher a essência do
Karatê, que está muito além de técnicas de defesa e ataque, muita além de
medalhas e prestígios das competições.
Abraço fraterno. Oss!
[1] Teólogo, Mestre em Educação,
Sensei do Dojô Hien Kan (Goianésia-GO), vinculado à Hien Karatê Kyokai e à
Confederação Brasileira de Karatê (CBK).
[2] Condomínio dos Samurais é uma
comunidade alternativa de estudantes de Karatê-Do, criada e liderada pelo
Mestre Benedito Nelson, na cidade de Porto Velho-RO. As famílias que ali
residem vieram do Rio de Janeiro juntamente com seu Mestre, no intuito de
buscarem profundo aperfeiçoamento em seu aprendizado.
Sensei Gidalti, gostei do seu artigo, um relato de suas reflexões e experiências junto ao nosso professor Benedito Nelson, com quem tive a honra de estar perto apenas 4 anos. Nesses 04 anos, fui elogiado por ele apenas uma vez e as críticas foram enormes e todas me fizeram evoluir. Lendo seu artigo compreendo algumas atitudes do Sensei Erivan, do senhor e dos demais senseis. Oss.
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